segunda-feira, 20 de julho de 2009

Procurador cego é aprovado para cargo de desembargador

BRASÍLIA - Há 20 anos, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca foi reprovado no concurso para juiz do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo por ser cego. Nesta quinta-feira, o sonho de ser desembargador foi concretizado - foi nomeado desembargador do TRT do Paraná e passou a ser o primeiro magistrado cego do país. "Estou tentando ir para a magistratura para realizar um sonho que tive no início da carreira e me foi negado. Não tenho mais grandes ambições. Quero ser um juiz sensato, sábio e justo", disse ele ao Estado, antes de saber da nomeação. Nem a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) nem o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sabem da existência de algum juiz cego no Brasil.



Ricardo Tadeu, 50 anos, nasceu prematuro de seis meses e teve paralisia cerebral. Sua visão ficou logo comprometida. Os movimentos dos braços e das pernas também foram prejudicados - hoje anda com alguma dificuldade, mas recuperou totalmente o movimento dos braços.



Até os 23 anos, enxergava com muita dificuldade. Aos 23, no terceiro ano do curso de Direito da Universidade de São Paulo, perdeu completamente a visão. Formou-se com a ajuda dos colegas e está, há 17 anos, na Procuradoria do Trabalho do Paraná.



Como o senhor ficou cego?

Eu nasci há 50 anos depois de uma gestação prematura de seis meses. Tive paralisia cerebral. Então eu tenho uma deficiência nas pernas e tive baixíssima visão até os 23 anos. Aos 23 anos, perdi totalmente a visão.



Como foi sua escolarização?

Eu fui alfabetizado pela minha mãe. Ela me ensinou a escrever e a fazer contas em papel de pão, porque eles eram grandes e era preciso escrever com letras grandes para eu ler. Na escola eu tive professoras fenomenais que escreviam os textos com letras maiores para eu poder ler.



Não foi para uma escola especial?

A minha família achava que eu tinha que estudar numa escola comum. Inclusive eu jogava bola com a molecada. Eu era grosso, mas jogava. Sempre fiz tudo, brigava, apanhava, batia...

Como foi o vestibular?

A Fuvest na época não sabia como fazer a prova pra mim. Eu propus que eles gravassem as questões em fita cassete, eu ouviria e escreveria as respostas. Fui assim que fiz as provas e passei no Largo São Francisco.



O sr. ficou cego no meio do curso. Como fez para se formar?

Foi no terceiro ano. A minha turma, de 1984, foi muito legal. Cada colega escolheu um livro que gostava mais e gravou o conteúdo em fita cassete. Eles leram para mim. Eu escutava tudo e fazia as provas oralmente. Assim eu me formei, fiz mestrado na USP e doutorado na Universidade Federal do Paraná.



E sua carreira profissional?

Eu comecei a trabalhar num escritório de advocacia trabalhista, remunerando os meus ledores. Mas ninguém me dava emprego. Era muito difícil eu conseguir um emprego melhor. Aí, o juiz Osvaldo Freus, do Tribunal do Trabalho de Campinas, me convidou para ser assessor dele. Eu trabalhei com ele por cinco anos. E ele me estimulou a fazer concurso para a magistratura.



O sr. fez as provas?

Comecei a fazer o concurso em 1989. Eu estava entre os 10 primeiros colocados e quando eu ia fazer a prova de sentença, que era justamente com o que eu trabalhava, anteciparam o meu exame médico. E eu fui cortado.



Com que argumento?

Juiz cego não pode trabalhar. Eu sempre contestei isso. Eu sempre dizia: senhores juízes, quando os senhores têm de ler um texto em língua estrangeira se louvam de um tradutor juramentado. Não é assim? É. O ledor funciona para mim como o tradutor juramentado funciona para vocês.



Na época o presidente em exercício era o juiz Nicolau dos Santos Neto.

Era.



E ficou por isso mesmo?

Naquela época o centro acadêmico da Faculdade de Direito realizou um ato público. E quem estava na direção do centro acadêmico era o Toffoli (José Antonio Dias Toffoli, advogado-geral da União). Eles ficaram indignados com a história e fizeram um ato público. Foi o que me fez acreditar na Justiça.



O sr. não tentou nada pela via judicial?

O ministro Eros Grau era meu professor na época e fez um mandado de segurança pra me defender. Ele e a Paula Dallari. Não deu certo, mas foi lindo o mandado de segurança.



Depois o sr. foi para a procuradoria.

Fiz concurso para procuradoria. O procurador-geral era o Aristides Junqueira e a posição dele era: "Se o Ricardo passar, ele vai fazer estágio probatório. Se passar no estágio probatório vai ser efetivado".



Nesse caso, a cegueira não atrapalhou?

Eu não acho que a cegueira deva ser usada como um pretexto médico, porque não é uma questão médica, é uma questão técnica. Se um cego pode ou não ser procurador é uma questão técnica, de Direito, e não médica.



E não teve dificuldade na procuradoria?

No começo eles não sabiam como lidar comigo. Hoje eles me disponibilizam tudo o que preciso. Continuo trabalhando com ledores, eles leem todos os processos e eu dito o que deve ser escrito. Eu participo de audiências de instrução de inquérito em que ouço testemunhas. E eu devo ter ingressado com dezenas de ações civis públicas, inclusive com provas que eu colhi. Todas foram julgadas procedentes.



E nas audiências, como era?

Eu instruí centenas de inquéritos civis. E nessa instrução eu presidia audiências em que tomava depoimentos de testemunhas. Eu sempre percebia que a testemunha estava vacilante por causa do tom da voz. Isso nunca foi problema para mim. Aí eu apertava e conseguia a verdade. Eu sempre instruí muito bem meus inquéritos. Eu ouço a respiração, o tom de voz. Eu percebo quando a testemunha se mexe na cadeira, se está à vontade, se está nervoso, tudo isso eu detecto pela voz.



O sr. espera alguma resistência se for nomeado desembargador?

Não. Eu tenho fé que não, que isso será assimilado pela sociedade brasileira.



Do que o senhor necessitaria no TRT?

Os desembargadores têm assessores. Eu preciso do mesmo número de assessores. E com o tempo quero me adaptar ao programa de leitura de voz de computador que lê tudo o que está na tela, porque os processos serão digitalizados. Aí nem de ledor humano precisarei mais. É uma questão de tempo.



É a favor de cotas para deficientes nos concursos para juízes?

Sou a favor. Essa determinação está no artigo 37, inciso VIII da Constituição, que determina que nos cargos públicos seja reservada uma cota, na forma da lei, para pessoas com deficiência. Defendo essa norma porque reforça o princípio da igualdade. As pessoas com deficiência, até hoje, têm seus direitos humanos negados. Hoje a deficiência é um conceito social, não é mais um conceito médico. Uma pessoa é deficiente na medida em que a sociedade lhe dá ou não os meios para exercer os seus direitos.



Mas o sr. não quer entrar por cota?

Eu não gostaria de entrar por causa disso, quero que seja analisado o meu currículo. Mas é o presidente que vai analisar isso, é ele que vai decidir. Não quero ficar supervalorizando meu currículo. Eu respeito os meus colegas. Todos eles são muito bons.



Não acha que podem dizer que a escolha do seu nome é algo politicamente correto?

É só as pessoas olharem o processo (de escolha dos desembargadores) e analisarem os currículos. Não peço nada mais do que isso. Estou participando dessa campanha em igualdade de condições com os meus colegas e confio no meu currículo. Acho que tenho qualificação para o cargo, como todos os meus colegas da lista têm.



No TRT o senhor encontrará alguma dificuldade?

Os juízes colocaram a minha colega (Thereza Cristina Gosdal)em primeiro lugar da lista por conta de uma tradição da Corte de prestigiar quem esteve em listas anteriores. Mas todos elogiaram o meu currículo. Houve um depoimento de um juiz que disse: "Eu entrevistei o Ricardo e tinha dúvida se era possível ele ser um juiz, porque não queria contratá-lo por conta da falta de visão nem impedi-lo por isso. Então precisava ser convencido. E ele me convenceu."



Qual é o topo da carreira para o sr?

Eu já sou um homem realizado. Como procurador, fiz tudo o que eu queria. Ajudei os deficientes, ajudei a combater o trabalho infantil. Fiz muita coisa. Estou tentando ir para a magistratura para realizar um sonho que tive no início da carreira e me foi negado. Não tenho mais grandes ambições. Quero ser um juiz sensato, sábio e justo.

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